domingo, 20 de maio de 2007

Sérias 10

Era uma conversa horizontal. Mas entreolhavam-se de cima para baixo. Alternadamente.
- Com tudo.
- Nem tudo. Simples seria se.
- A gente se acostuma com tudo. Nada é indiferente a nossa indiferença.
- Como nos concebemos. Não do que somos
- Somos só a parte viva do que pensamos. Como nos concebemos.
Os silêncios eram comuns. Minutos duravam, não raro, horas. Palavras medidas, não cabidas em simples sílabas
- Nem tudo
- Ou tudo
- É como a fome.
- De quê?
- Ninguém se acostuma com a fome. Come.
Moveram gestos lentos. Puderam se engolir em paz. Com a fome dos que tem fome. Até a próxima indigesta discussão.

Sérias 9

no que seria mais da oito.
É quase que meu retrato. Apelo-me à retratação. Talvez. Por algumas palavras desajustadas. Poderiam estar reparafusadas. E então tudo em seu lugar. Parece que numa exatidão exata. Voltado a um sonho de céu. Sensação das insensatas. Tentamos, pensemos. Vejamos.
...
- E agora?
- Esquece do tempo. Abraça. Envolve com teus braços esse infinito. De minha presença.
- Estou perdido. Mas me acho desencontrado.

sábado, 12 de maio de 2007

Sérias 8

- Então?
- Então...
- Então tudo que disse ontem é mentira?
- Era verdade ontem
- E hoje?
- Hoje é mentira amanhã.

terça-feira, 1 de maio de 2007

"Ctrl e etc" 01

“A conclamação onipresente sobre o ingresso da humanidade em uma Era Digital nos serve como uma faísca de luz-guia através dos caminhos pisados pelo homem desde seus hodiernos pré-históricos. Nossa análise - restrita, porém com farejos de elucubração – parte justamente das cavernas e da descorporeidade do hominídeo que se abrigava sob rochas.

Este homem, imerso num ambiente hostil, presa exposta aos predadores, é movimento em fuga. Sua situação de acuamento como ser vivente é extensiva ao corpo, que não se ferramenta em respostas à atmosfera de ameaça – pelo contrário, esquiva-se porque ainda não está inserido em condições de revide ao hábitat. A resposta evolutiva da espécie vem com a ereção vertebral e sua conseqüente liberdade de flexão dos membros posteriores.

Em pé e com mãos e braços desimpedidos, os espécimes homens iniciam o estágio de descoberta e exploração de seu meio ambiente, e da subversão deste meio para sua sobrevivência. Suas articulações agora lhe permitem coletar e manejar objetos, transformar ou construí-los para fins diversos como a caça e a defesa, assim como torna possível o agarre e a coleta do que a natureza intacta estimulava a tatear.

O deslocamento - nomadização – e domínio do ambiente - que viria a culminar em técnicas de manipulação da natureza, como agricultura e a domesticação/criação de animais para consumo – levam o homem ao universo de uma corporeidade em descoberta, estimulantemente atingido pela ubiqüidade de um mundo que passava a ser escamado. O corpo como meio de troca e subvenção da presença atinge sua dimensão ocupacional, funcional e sensorial plenos. Um novo mundo passa a ser acessível através da corporeidade.

Foram precisos milhares de anos para que toda bagagem cognoscível acumulada a esta época se transmutasse – ou se desgarrasse – em inúmeras dimensões de inserção do corpo em seu sócio-ambiente, até ser reduzido ao toque de um dedo. Da ante-sala da história aos desacontecimentos pós-historicizados, a incorporação do mundo passa da sensibilidade e intuitividade da superfície corpórea para o acesso ao ambiente convivial através do esbarre de um dedo ao botão.

É esta a principal característica da Era Digital: o acesso ao mundo através dos dedos. Ou dito de outra forma, o redimensionamento de nossa presença corporal no mundo a toques digitais. As conseqüências observáveis dessa transformação são muitas, e vão desde uma nova realidade física do corpo, que se desfuncionaliza e passa a buscar novas funções de ambientação, até a readaptação das estruturas psíquicas e funções sensitivas a uma nova categoria de acesso ao terreno da vida.

Sem dúvidas, porém, a maior mudança provocada pela chegada desta Era é sobre o habitat que passamos a tatear a partir de seu surgimento acelerado. Para que o deleite da Era Digital pudesse ser imersamente experimentado, não bastaria o acesso digital ao mundo. Fazia-se necessário uma natureza correspondente à modalidade de acesso, um mundo encoberto à espera de seus espécimes desbravadores, um mundo naturalmente digital, ao alcance de um pressionar dos dedos. Criado à imagem e semelhança de seu portal, o Mundo Digital passa a ser a realidade da Era Digital – o sócio-ambiente que acessamos sem estar.

Para uma presença sem corpo, um mundo sem corpos. Apenas projeções blindadas do que um dia foi a vida vivida.″


(Marisa Montesquieu in De Esmeraldos a Contratados: uma história do humano pelas veredas da tecno-burocratização da vida)