segunda-feira, 15 de junho de 2009

Sérias 19 - talvez, a última delas

Eu e eu. Nós. Rompemos um com o outro.

A iniciativa foi minha. E só. Estava insuportável conviver com ele. Dentro dele, sobre ele. Alternadamente subalternos.

Queria suportar escolher dizer que somos um relacionamento em crise, equação trôpega à procura de solução, sinalização ou, simplesmente, borracha. Mas superamos tais pontos, à saturação. Atritos dão conta de um dos átrios, das veias. Não, o sangue todo me escapa do coração e sobe à cabeça quando penso em mim, nele.

Começou, como não deve ser surpresa a quem tenha - uma única vez - nascido, no começo. Viemos, nos conhecemos e nos desestruturamos. Uma tragédia de berço, não fosse de gênese.

Ele era fraco. Eu, lúcido às claras. Ou: eu era fraco; ele, lúcido às claras. Na prática, tentei sobreviver. Ele, eu além, ali, sonhava – e só.

Lembro dos nossos primeiros atropelos por estas esquinas permanentemente cruzadas. Há alguns anos, numa idade dessas, por exemplo, quis atravessar nossa existência, ter outros a quem falar de mim, dele. Ele nos ancorou pelo pescoço e resistiu. Preferia a solidão oceânica em que estava mergulhado.

Submergi, sempre escapando à superfície para tragadas de um arbítrio menos só. Afogado na desconfiança dos sentimentos alheios, ele apenas observava, inquieto.

Uma paixão, destas imbecis e pueris, o que é? Fácil, pensava, eu, estratégico. Aquilo ali, ao alcance dos lábios, na altura da garganta apreensiva, a duas batidas da pulsação extravagante, a um palmo do tátil orgástico. Um vento fresco na cara, à espera das tempestades, calculava.

Não, replicava-me, aos tapas agudos em nosso corpo cru. Pouco. Isso é nada, dizia ele, sem frases. Por nós, eu seguia arriscando, racionalmente nos arranhando.

Convivíamos. O cotidiano incômodo, as idéias frontais, os passos paralelos, as saídas laterais. Ainda que indiferentes, não nos afastamos. Talvez ainda vagasse a idéia de que éramos um só, eu e eu.

Um dia, porém, ele gritou. Com berros que percorreram sinfonicamente todas as nossas cavidades, anunciou, radiante, que iria me explicar tudo em dois olhares. Um era o nosso. Havia se apaixonado.

Tentei entender, por todas as fórmulas conhecidas, sua respiração ofegante. Parecia absorver todos os ares de um universo – o peito pulsante nos atravessava o corpo.
Mas o ceticismo com que o encarnava agora me fazia sombra diante de sua alegria iluminada. Mostrei-lhe as cicatrizes. Fui quase trevas. Ele, raiava. Não pude apagar aquele sol que repentinamente nos habitava. E me escondi para libertá-lo.

Outro dia, ele gritou. Ecoou por dentro de nós como uma lágrima explodida em milhares de choros. Desesperado, havia acordado. Estava apagado, e só consegui notar o vazio que agora nos preenchia.

De olhos fechados, confessei, fraquejando, também ter me apaixonado. Minha vez. Ele havia me conquistado, era ele quem eu queria ser. Pedi explicações, porquês. E tentei fazê-lo dormir novamente, sonhar novamente, nos iluminar novamente. Tarde demais. Éramos só um novamente.

Agora, ele é apenas uma sombra que recolhe nossos caminhos e planta armadilhas aos nossos pés.

Resolvemos romper, como se pudéssemos ser dia e noite, assim, fingindo que não orbitávamos um ao outro.

É pouco.

Planejo matá-lo. Mas tenho medo de morrer.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Pérfidas 11

Sobre o fracasso

Que culpa eu tenho?

Todas, aparentemente. Gosto, porém, de distribuí-las

Que sou vítima de uma injunção de catástrofes sociais, por exemplo, não há dúvidas. Vivo em uma sociedade imperfeita, nada mais normal que meus desajustes. Estranhos, para mim, são os que ignoram todas as tragédias cotidianas e, “apesar de tudo” – expressão mais abominável depois de “mulher melancia” – vivem a pregar sucessos na parede. E exibí-las para quem, como eu, faço parte daquele tudo que o filha da puta teve de atolar para pavimentar seu caminho. Oras, sou da maioria. Por isso somos o subproduto da iniquidade que dá liga ao que chamam sistema – se fossemos minoria, seríamos só fudidos, e ponto. Sinto-me confortável sob essa perspectiva. Considero-a bem lógica e moralmente resignante, além da agradável acolhida que me proporciona junto à gente muito mais inteligente que eu – mestres, doutores, usuários de ópio, adestradores de cães, enfim.

As cicatrizes de meu inconsciente, obviamente, não jogam suas tranças ao fundo do poço. Não ajudam. Pelo contrário, atrapalham: contribuem com lançamentos diários de baldes de cimento . São mais de duas décadas de traumas que já me beiram o pescoço. Faz parte, busco insistir. Afinal, todos estamos sujeitos aos caprichos dessa teia psíquica capaz de fazer sonhar, gozar e ao mesmo tempo arquivar lembranças intocáveis e intoleráveis. O rapaz ali do degrau de cima, que se orgulha de ter nervos de aço, é quem me parece estar fora de controle. Ou não tem um cérebro vulnerável às marcas, expostas ou intrusamente escondidas, da vida - o que é o mesmo que dizer que não tem um cérebro, nem nervos, nem a mais orgástica sensação do incontrolável. Prefiro, apesar de não ter nenhuma noção do que isso signifique, que Freud me explique a ser colocado à prova por um cobertor felpudo que arrota segurança e defeca bom senso.

A aleatoriedade dos acontecimentos também anda a me seduzir. Nada mais normal que o imponderável das circunstâncias agindo por entre bilhões de almas, distribuindo, aqui e ali, louros e lágrimas. Vislumbrado por essa régua sem regras, penso suavemente em sua total ausência de justiça, desarrazoada de qualquer compromisso com os vívidos objetos diante dos quais gira sua roleta. Perdeu? Paciência. O jovem senhor por quem acabo de passar parece não comer a alguns dias. Alguém nesse momento vagarosamente abre uma boa garrafa de vinho. Eu continuo a andar sem rumo, à espera da próxima rodada. Se todos ganharmos, o cassino fecha as portas. Estou perdido, mas continuo no jogo.

Uma amiga ligada à astrologia e outras forças pouco cartesianas – inclusive a numerologia - vive a atribuir meu fracasso às energias negativas que diz que atraio a cada frase. Retruco a ela que não tenho culpa se os astros não entendem nada de ironias e pouco menos que isso sobre os sarcasmos que me acompanham. Ela não entende, lógico. E então volto a prometer que deixarei o pessimismo de lado, que ele não leva ninguém a lugar algum. Novamente ela não entende. Acho que uma explicação não vai adiantar. Saber desistir também pode ser desafiador, imagino, calado.

Perco a paciência somente com os que me falam sobre a falta de força de vontade. Primeiro, essa tal força nunca me foi bem descrita. É como a vontade de potência nietzschiana? Não, é mais simples, dizem. Como a força centrípeta, atrativa e incontrolável? Não, não. São duas palavras que juntas não significam nada, fico a calcular. Vontade, por si, é uma força, penso. A preposição no meio só piora minha compreensão. Força-tarefa, por exemplo, faz todo sentido – da sintaxe à projeção, faz todo sentido. Força-vontade também o faria – algo supraforçado, empurrado ladeira abaixo em uma cadeira de rodas motorizada, exemplifico. Amarram a cara, impacientes, e voltam a me dizer que é o contrário. É a capacidade de empurrar uma rocha montanha acima, mesmo com o vento que sopra contra tentando derrubar a cada passo. Questiono por que alguém cometeria tal imbecilidade, e recebo olhares suspirantes.

Somos todos culpados, volto a pensar, e sorrio, aliviado.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Pérfidas 10

É aniversário da cidade, lá fora.

Nota-se pela parafernália de vozes e risos.

Não fui convidado. Sou voluntariamente como um morador de rua – com vinho, apartamento e um pedaço de pizza para observar os que passam e vão, ao contrário de meus camaradas.

Rezo para que um teto desabe sobre esses aduladores de concreto que se fazem massa estridente diante de um grave cantor qualquer. Que o céu venha abaixo, para que possam rapidamente engatilhar seus eternos companheiros, os guarda-chuvas. Orgulham-se disso. São como frangos espantados, depenados.

Fogos, luzes. Agora devem olhar em volta e, suspirantes, dizer que todo aquele acúmulo de cidade que os envolve já foi belo.

Até gente como eu vir para cá e notar que era feia.