quarta-feira, 25 de julho de 2007

Pérfidas 6

Começa assim, na horizontal parado. Deitado. Os olhos nos cantos do teto. Uma aranha. Eu também me encostaria por ali. Se uma de suas pernas convidasse. Músculos moluscos, vadios. Deitados, parados. Projeto um dia me levantar. Minha vingança: um estirão em tuas fibras. Não cessarão tabefes sobre tabefes. Depois, um dia. Por enquanto, deitados. Parados. À espreita da teia. Nesse emaranhado de pensamentos coagulados, o sangue se acanha. Nem ousa subir à cabeça. Malditos pés, tremidos. Descobertos e expostos aos suspiros frios. As vozes da televisão soam como gritos do além. Gemidos infantis traqueados por luzes incolores e bonecos de plásticos, peles e ossos. Vozes em vão vêm e vão. Imobilizados, os sentidos não sentem. Alheios. É como querer permanecer. Arrefecer-se granulado por entre os vãos dos lençóis amassados. Deitado, parado. Inanimado. Rostos conhecidos são por demais conhecidos. Cansaram de ser linhas de expressão – não expressam mais que indiferença. Gentes carregando o fardo de existirem como gentes. À indiferença, rezo e rogo. A proteção e calma de um útero. O silêncio fremido uterino. Terminaria em posição fetal, abraçando-me. Mas os olhos procuram os cantos dos tetos das teias dos palpos das fibras dos tapas das idéias insensatas pouco exatas insensíveis suspiradas como gentes natimortas. Acabo na horizontal, deitado. Parado.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Sérias 11

Esse mundo, de cabeça pra baixo, dizia eu menos preocupado em falar do que olhar. Era o olhar.
- Esse mundo desanda de cabeça pra baixo.
- Desanda, não anda?
Desanda porque trança as pernas pra insistir em andar reto, responderia se hipnotizado não me fizesse. E em seus olhos me desfizesse.
- De cabeça pra baixo.
- Foi só um avião que caiu de cócoras.
Sorria timidamente calada e o silêncio ofuscava.
Minhas palavras seriam demoradas e pormenorizadas, correspondentes ao teor de inquérito sério da conversa, penso agora, ao escrever, este algo que nem me passou pela cabeça naquele momento – estava preso aos olhos. Cárcere privado, os olhos.
- Não, não. Falava de você.
- Eu?
- O que caiu fui eu.
O que caiu fui eu, esborrachado, de corpo prostrado, livre para queda, saltado de um trampolim ornamental de universos de altura, faria força para completar os afoitos pensamentos, se... À condição de que seus olhos me libertassem.
- Você caiu, a culpa é minha e por isso o mundo desanda de cabeça pra baixo. Mais ou menos isso?
Era séria, falava sério, ironizava em série - para mim um eterno mistério
- Exatamente.
Exatamente, queria ter dito enquanto pronunciava exatamente. Era só, não haviam mais palavras exatas aos olhos de seu brilho.
- O que exatamente?
- Cai, você me derrubou, passou a rasteira, atraiu-me para o tropeço. E quando percebi, estava no céu.
Estava no céu depois de caído, mundo de cabeça pra baixo, tentaria eu explicar se lá no alto de seu olhar não faltasse ar pra respirar.


quarta-feira, 11 de julho de 2007

Pérfidas 5

Para Quem Pode

2042. As rédeas se apanham a novos enredos. O mundo não está mais sob o controle de mãos humanas. Angulares aparelhos cuja artificial natureza fora um dia de manipulação de homens e seus dedos. Apossaram-se de seus criadores, as criaturas. Durante seus primórdios eles foram apenas blocais aparelhos de comunicação. Boçais telefones celulares cuja função manufaturada em seu gene analógico era a simples troca de sinais entre si. Apenas dar voz aos seus hominídeos usuários humificados. Desenvolvimentos tecnológicos em processos de submissão involuntária vincularam multiplicadas funções a suas carcaças portáteis. À exponencial aceleração de sua propriedade se somaram celeumas de substituições - ritos de passagem para novos e novíssimos aparelhos. Corpos celulares póstumos eram cotidianamente descartados aos milhões em invólucros plásticos negros. Valia a novidade, a qualquer valor. Passaram a receber e armazenar dados em formatos até então desconhecidos de sua natureza eletrônica. Capturavam imagens do mundo, dos homens. Emitiam sons de todas as espécies. Reproduziam-nos a todo o tempo, para posterior armazenamento em pequenas caixas de silício. Guardavam e trocavam dados sigilosos entre si - via laser, via ondas aéreas, via... O acúmulo de utilidades prestadas ultrapassou a fronteira física de seus leves corpos. Engendraram-se em um teia global de trocas informacionais – em substituição a engenharia em rede anterior, formada por computadores pessoais através de uma Internet. Nunca mais voltaram para um bolso ou bolsa. Estavam sempre a mão, à exposição. Tornaram-se imprescindíveis para todos momentos. Um modelo que armazenava e transferia sonhos diretamente ao cérebro de seu usuário durante o sono foi um dos marcos evolutivos das criaturas telefônicas celulares. Noite e dia à espera da ação. As conexões elétricas através de chips metálicos foram enterradas juntas ao último aparelho portador de tal tecnologia no dia 29 de abril de 2023. A nova geração utilizava microssistemas comunicadores estruturados em partículas de DNA. Foi o embrião da nova geração de telefones celulares readaptados ao funcionamento neural. Por meio de sinapses sem conexão física os aparelhos puderam se transformar em mentes pensantes, responsáveis pelo processamento e armazenamento de dados cognitivos complexos – uma caixa craniana substituta. Um segundo cérebro ao alcance das mãos. Mais caros, mais inteligentes. Consciências rápidas, precisas. Funcionais. Designs arrojados – para quem pensa com estilo. Tarefas orgânicas puderam ser captadas e apreendidas via celular. O corpo, máquina executora. Ao estimular os nervos sensoriais humanos, puderam produzir e suprir as funções de fome, prazer, medo, sobrevivência. Por pragmatismo e praticidade. A vida humana foi totalmente transportada para o telefone portável. Apropriada pelo desenvolvimento tecnológico de sua criatura. E então, a inversão. Na Revolução das Máquinas não houve guerras, violência, submissão ou dor. A Revolução das Máquinas foi apenas uma constatação: o homem, agora, era apenas uma das funções do telefone celular.