sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Sérias 18

Trancou a porta, às chaves. Lacrou-a com um pedaço de madeira. Deitou-se na cama. Cruzou os braços sob as costas, entre o corpo e o lençol de triângulos lilases. Tentou atar o punho ao punho. Às mãos, deu às mãos e um punhado do tecido. Com o nó em que se envolvera, não conseguiria levantar seu membro em direção à porta, calculou. Fechou os olhos. O exercício mental consistia em localizar um ponto azul acima de sua sobrancelha esquerda e nele se fixar até o nascer do sol. Pouco mais de 76 horas, pensou. Suportou, porém, apenas 32 delas. Na trigésima terceira, viu-se jogado à verticalidade pelo corpo, num pulsar cardíaco que lhe lacrimejou os olhos. Foi à porta. Arrastou até ela uma mesa, duas cadeiras, a pequena estante e alguns grandes livros. Um novo desafio se abatia sobre seu corpo: de vigília, não poderia adormecer, sob o risco de sua alma empurrá-lo para fora do quarto. Procurou se distrair medindo, polegada a polegada, a área do cubo onde se aprisionara. De joelhos, percorreu todas as paredes, intercalando seu polegar direito ao esquerdo, direito, esquerdo, direito, esquerdo. Já se arrastando com o peito no chão, concluiu, após 22 horas, que o quarto tinha uma dimensão infinita. Resolveu não arriscar o pouco de sanidade que havia restabelecido nas últimas horas e adiou a saída, o encontro. Duzentas e vinte horas a mais ou duzentas e vinte a menos fariam diferença. Precisava de um tempo para não pensar, pensou. O próximo passo seria demonstrar com quantos passos é possível percorrer o infinito. Para dificultar a tarefa, e não se distrair no caminho, adotou estratégia claudicante: para cada dois passos à frente, três seriam dados para trás. Ainda debruçado sobre o cadarço desamarrado, sentiu no rosto a forte ventania que tentava o arrastar para além dos móveis empilhados. Agarrou-se à razão e aos fios de nylon, resistiu, e partiu para sua marcha. A concentração não lhe traiu, mas um atalho involuntário o levou ao inevitável destino. Do alto de seu olhar cabisbaixo, tropeçou nos obstáculos arquitetados pelos próprios pensamentos e, com o peso daqueles dias, irrompeu pela porta.

Lá fora, uma brisa feminina sublime o esperava, irritada. De suas ventanas, saltaram redemoinhos de dedos adocicados, que levitaram-no sobre etéreas pedras de areia. Tentáculos tempestuosos invadiram seu corpo, por todas as dimensões, e arrastaram-no pelo avesso. Sentiu o coração dilacerar antes de explodir em um sem-número de faíscas cintilantes. Foi digerido lentamente pelas carícias daquela máquina de implodir sentimentos. Morreu sufocado pela beleza dos gestos - como sempre temeu.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sérias 17

Tive um rio nas mãos.

Ele escorreu até mim num dia que já se partira ao meio. Procurava na sombra de minhas pernas curvadas um abrigo contra os tentáculos do Sol. Queriam evaporá-lo, sussurrou. Ofereci-lhe as mãos, além dos telhados de meu braço. Sua face límpida me sorriu.

Esperei que a sombra maior, da copa da árvore posicionada a minha retaguarda, nos oferecesse a oportunidade da fuga, apanhei-o nos braços e corri. Disparado pelos caminhos rasgados da floresta, fui ao encontro da mais calma penumbra. Sob o manto da ramagem silenciosa, nos deitamos. Conversamos longamente e brincamos repetitivamente, como ondas que vêm e vão. Nos encharcamos. Matei minha sede; ele, sua fome. Me apaixonei. Por sua transparência, por seu frescor. Pela forma que me preencheu cada sulco de vida.

Na caída da noite, perguntei se queria voltar ao riacho de onde se espichara. Turvou suas águas e negou. Encolhido como uma pequena poça, revelou-me seu mais puro desejo: se perder na imensidão do oceano. Disse a ele que o levaria.

Caiu no sono e, enquanto dormia, vi refletida em sua superfície toda a claridade do luar. Quis percorrê-lo com todo o carinho dos céus. Sucumbi, porém, ao mais seco dos instintos.

Silenciosamente, bebi cada gota de seu corpo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Pérfidas 9

Foi covardia.

- Me ofereça sua versão. Qualquer uma, ou duas. Todas elas, empilhadas, trôpegas, altivas, pétreas, incólumes ou frouxas – vai, agrida-me, com força. Saque uma delas e atire.

Continuou parado. Mirava o mundo com a boca entreaberta, caída à esquerda. A arrogância que culminava no leve franzir da testa se articulava ainda na postura do corpo. Equilibrava-se sobre um compasso obtusamente aberto. Tocava o solo com a madeira do salto dos altos sapatos. Um dos braços se arqueava até a cintura; o outro, parecia pensar, tão solto quanto burro.

Alinhava o peito ao nariz, e de sua superfície aduncada uma linha imaginária tangia os cabelos. A moldura dos fios remetia a um capacete para bicicletas infantis, com rodinhas. Era seu ponto alto, a metonimização perfeita para aquela personagem.

Continuaram intactos o homem e sua voz. Continuei:

- Sua agressividade me espanta pela mansidão. Se ao menos me socasse, ou espancasse com uma cadeira e depois botasse fogo em mim e nos restos das pernas da desdita. Do estopim de sua ira, porém, só saltam fogos barulhentos e coloridos. Fumaça, entende?

Havia implorado por sua incontinência verbal com o simples propósito de vê-lo nu. Desejava dissecar sua fragilidade, vislumbrar o carbono daquele espécime, por qual espécie fora parido – ou se alimentado. Seria, segundo um raciocínio rápido, como um balão. Esvaziaria em dez ou quinze segundos e, então, murcho, viria ao nosso encontro toda sua constituição de prontas idéias. Fracassada tentativa.

Prometeu me processar. Ir aos jornais.

Não me jurou com a morte, mas cumpriu a sentença imposta pelo nó de orgulho que lhe subiu à garganta.

No fim, um homem de capacete, em cima de uma moto, atirou três vezes contra meu corpo. Um dos projéteis, reluzente como fogo de artifício, embrulhado por uma tênue nuvem fumaça, veio se alojar na parte superior esquerda de meu cérebro.

Versão oficial: roubo seguido de morte.

sábado, 17 de maio de 2008

Pérfidas 8

- Kardecista, gerente de RH ou pop-artista? De família alemã, blogueira, rotariana? Pós-algo, talvez?
- Graduanda em Ciências Sociais.
- Tenho o que precisa. Opinião insensata com lágrimas de rebeldia. Algumas certezas, convictas como gritos púberes, e nenhuma dúvida sobre os erros alheios. Vai levar?
- Funciona?
- Olha a sua volta, garota: você está num supermercado de opiniões. Na barraca ao lado, o produto é o mesmo. E na outra. Às vezes, muda a embalagem. Ou o sabor. Mas no fundo, onde se nutrem as traças, fica tudo igual. Garantia de um ano ou seu tempo empenhado de volta.
- Me dá dois.
- Embrulha o outro pra presente?
- É prum amigo. A TV dele quebrou.
- Faço três pelo preço de dois.
- De graça? Suspeito.
- Encare como uma corrente: três contaminam mais três que contaminam mais três que contaminam mais três e por aí foi. Leva, oferece para alguém que precisa. Faz uma doação.
- Dois pra presente, então. Capricha no visual. Faz um pacote grande, pra impressionar.
- Dialéticos e sintéticos na medida certa, prontos pra se fazerem acreditar. Boa viagem e boa sorte.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Extemporâneas

cada dia, cada dia, cada dia, cada dia, cada dia
é igual a cada dia
é igual
É
não é mais

Vou? Vai. Vôo.

domingo, 4 de maio de 2008

Pérfidas 7

O mesmo fluxo de capital não corre debaixo da mesma ponte, entabulou o ex-maoísta que fez carreira em Wall Street. Portanto, o que foi especulado referenciado está - ou estará, a depender da flutuação do câmbio futuro atrelado à estagnação passada.
O indivíduo, o mercado ou o samba de uma nota só consumiram todo o tempo, mas sobra espaço para a projeção dos índices de preços. Quanto custa? Chame o analista, porque Freud não explica. Entre altos e baixos, é preferível reter os ativos medíocres - numa avaliação conservadora dos fatos.
As informações que chegam dão margens a movimentos ousados, desde que descabidos de senso oportuno de improbidade. Após semanas de quedas - com a menina que caiu da janela, o padre aterrisante que alfinetou os balões e a derrota trabalhista em Londres -, o momento é de agredir, aproveitando-se do alta popularidade do presidente, da audiência dos últimos capítulos da novela e do levante no Tibete. O investment grade aquece os termômetros: é hora de ir às compras.
Os ventos que sopram de Nova Iorque trazem a moda do casaco de couro sintético, o seriado policial e a primária escolha do presidente-de-infantaria do cenário mundial. Do Atlântico Sul chegou o ciclone, seguido da defesa civil, das verbas para reconstrução e da porcentagem desviada para o caixinha da campanha. A época de turbulências é propícia a decolagens na carreira: faça um curso de ida, sem curvas, ao corolário de exemplos vencendores.
Para além de todo empenho e motivação, cuidados com o corpo ainda são fundamentais. Com Pilates, lave as mãos, os dedos e as curvas esculpidas da vida. O preço dos alimentos preocupa se duas notas não compram um quilo. Perca peso, pergunte-me como, e responderei: leve uma vida simples, sem notas, sem pesos e medidas. A solução está na administração oferecida pelo serviço exclusivo da casa bancária de reputação amortizada pela crise hipotecária. Administram seus bens sem fazer o mal. Amém.
E o ciclo é reciclável, apesar das embalagens, em massa descartáveis.
Do alto se avista, ao fundo, o sub-produto do investimento bem-feito. De baixo, salta do topo uma corda dourada, que convida à escala - e enforca.

sábado, 19 de abril de 2008

Sérias 16

Chegou com as línguas nas canelas, o peito falando pelas palavras, a pele molhada em dégradé oleoginoso. Desabafou, pulmonar:
- Mais?
- Ou menos, depende - declamou o da frente, impávido nos gestos, sutil nos movimentos das sobrancelhas.
Com as mãos segurando os joelhos e os joelhos suportando o corpo, tossiu:
- Maior, talvez?
- Menor, maior, na medida certa, quem sabe? - replicou o do lado, sem remeter o olhar ao inquisidor, menos preocupado com o espaço das coisas do que com as coisas do espaço.
Ajustando o ângulo da coluna às energias do tórax, buscou respostas oxigenadas. À esquerda:
- Para o alto?
- E avante? Não seja ridículo. Para baixo ou para trás, em linha reta ou perdido nas curvas, de pernas pro ar ou de cócoras pro sol: o que importa é a trajetória do projétil A do ponto X ao ponto Y. Entendeu A? Ou vou ter que te ensinar o beabá?
O cansaço foi substituído pela ânsia. Em busca de informações, exasperou:
-Melhor?
Todos à volta resolveram lhe dar a requerida atenção.
Um:
- O melhor morreu de febre superlativa.
Outro:
- O pior de anemia, carência de superlativos e objetivos no sangue, de sangue irrigando a cabeça.
O de trás, aos pulos:
- Bom para o mau, que vive dos restos de ambos.
Quem pairava ali por cima parou para opinar:
- E mau para o bom, que no começo lamentava as fatalidades, e hoje lamenta por lamentar. Sem parar.
Os olhos arregalados estavam assustados - era o que se percebia pela boca aberta. Tentou, ainda:
- E então, qual o caminho?
Todos continuaram parados, rodeados por um sereno fino e gelado. Ele, a correr. Por todas as direções possíveis e, às vezes, pelas impossíveis. Quando pára, pergunta: maior? mais? melhor? por onde?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Sérias 15

- Volta aqui, seu menino. Levado, levou-me as pernas numa leva de saudades. Volta, preciso ainda me rastejar...
O menino deu voltas e se foi, traçando círculos com os pés, a areia espiralada arranhando formas de caminho.
- Conhece esse desconhecido de onde? Parece que aquelas mãos...
- Levou a mão em um aperto, os braços num abraço. E agora as pernas, num salto de assalto. Mas ele sempre volta para buscar o resto.
Os restos que ao corpo restam, arrastados. A inocência foi escalpelada nas primeiras infâncias. – Para sentir na pele - assoprou-me ele, num dia ensolarado. Foram-se também os ombros, e com eles a leveza que suportavam. Com o peso da vida nas costas, teve levados os joelhos. Não se dobrar, não cair. Não levantar.
- E agora, o que falta?
- O sorriso perdi quando me dei por gente.
Percebeu que nunca o vira sorrir. E viu ao longe, saltitante, lindo em sua postura desenvolta, o menino às voltas com risadas trovejantes. Reconheceu o rosto dele naquela face infantil.
- Quando acha que volta para buscar os olhos?
Ele a olhou. Fixamente, viram-se um ao outro entre os reflexos de um piscar. Eram tristes, apagados. Mas irreparáveis em profundidade. Ela viu, lá no fundo, um menino que brilhava envolto por uma lágrima.
- Talvez os olhos sejam os últimos. Ele quer que eu o veja correndo e me levando com ele, pedaço por pedaço. Quer que eu me enxergue menino.
- É a morte que te leva aos poucos?
Ele lançaria gargalhadas se as tivesse no coldre, mas o gesto da cabeça lhe serviu ao disparo.
- A morte? Não, não. É a vida em seu mais inocente esplendor. A morte... A morte é o que resta, o que me resta...
Silêncio.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Sérias 14

Eu errei, tu erraste, ele errou. Nós erramos, nós nascemos. Vivemos e viemos. Vós vendestes, eles compraram, todos cederam. No futuro do subjuntivo, imperativa seria a morte. Se não vivessemos nesta conjugação morta de vida. Terminações, nervosas, aos poucos decoradas e ensaiadas. Culpa de toda esta gramática enfática. No começo era o verbo, depois os substantivos. Adjetivados, no presente superlativos, esculpidos e resumidos.

Uma passagem para o infinitivo, na voz passiva, bem ao lado dos pretéritos imperfeitos, por favor. Silêncio.